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Publicado em
30/12/22

Raquianestesia: considerações anatômicas e clínicas

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Raquianestesia: considerações anatômicas e clínicas

A Raquianestesia é uma das principais técnicas anestésicas da atualidade. Com mais de 100 anos desde seu surgimento, ela é amplamente empregada nos mais diversos centros cirúrgicos. Como todo procedimento, ela apresenta riscos e complicações, as quais já possuem manejo estabelecido, caracterizando-se assim como um método eficaz e seguro.

Assim como a Raquianestesia, existem outros métodos de bloqueios neuroaxiais (como a Anestesia Peridural), importante a boa compreensão e diferenciação deles. Neste texto iremos discutir o conceito, a origem e as considerações clínicas da Anestesia Raquimedular.

O que é a Raquianestesia?

A Raquianestesia, também chamada de Anestesia Raquidiana ou Anestesia Subaracnóidea, é um tipo de bloqueio neuroaxial regional que ocorre pelo acesso e injeção de anestésicos no Líquido Cefalorraquidiano (LCR) medular do paciente ao nível lombar. Esse anestésico é responsável por anular a dor e sensação tátil dos nervos que emergem da medula espinhal.

Anatomicamente falando, a anestesia raquidiana irá acontecer por uma punção lombar ao nível de L3-L4 ou L4-L5, onde atravessará ligamentos e camadas de meninges medulares (dura-máter e aracnóide) até chegar ao espaço subaracnóideo. Após o acesso, a substância anestésica é injetada e inicia-se o procedimento necessário. 

Anatomia da Raquianestesia. Fonte: Shutterstock
Anatomia da Raquianestesia. Fonte: Shutterstock

O efeito anestésico dura cerca de 2 horas, enquanto o analgésico dura de 6 a 12 horas. É importante dizer que os procedimentos mais comuns de requererem anestesia Subaracnóidea são cirurgias abdominais e partos, tanto vaginais quanto cirúrgicos.

Como surgiu?

A técnica de anestesia Raquidiana surgiu no final do século XIX, criada pelo médico alemão August Bier, pouco tempo após o surgimento dos anestésicos tópicos e dos bloqueios nervosos periféricos. Esse feito ocorreu de maneira experimental em uma cirurgia de exérese de tumor em um dos membros inferiores de um paciente jovem com tuberculose. Nela, Bier utilizou uma agulha de Quincke de alto calibre e injetou 3mL de cocaína 0,5% no espaço subaracnóideo do paciente, obtendo bons resultados.

Posteriormente, August Bier e Heinrich Quincke aprofundaram seu trabalho de descrever e padronizar a raquianestesia. Apesar da falta de cuidados que hoje são protocolo, como métodos de assepsia e antissepsia, Bier já se preocupava com os possíveis complicações do seu método, o que o fez prestar atenção em diluição de anestésico e oclusão pós-punção, a fim de evitar perda de líquido cefalorraquidiano.

Como funciona?

A seguir, iremos detalhar a abordagem prática de uma Raquianestesia. Como todo procedimento, devemos primeiramente explicar ao paciente o que será realizado. Após a inteira compreensão, confirma-se a ausência de contraindicações e posiciona-se o paciente. Existem duas possibilidades desse posicionamento:

  • Decúbito lateral: nele há o menor risco de mal-estar vagal e maior conforto para o paciente;
  • Sentado fletido para frente: menor conforto para o paciente, porém as estruturas anatômicas são mais facilmente palpadas pelo profissional anestesista.
Opções de posicionamento para anestesias neuroaxiais. Fonte: UpToDate
Opções de posicionamento para anestesias neuroaxiais. Fonte: UpToDate

Em seguida, separa-se a agulha 25 G ou 27 G e realiza-se a assepsia e antissepsia da região lombar. Então, palpa-se o espaço intervertebral L3-L4 ou L4-L5, localizado por L4 que estará no ponto médio da linha imaginária que une as duas cristas ilíacas posteriores (Linha de Tuffier). Escolhe-se essa altura por menor risco de lesão medular por causa do fim da medula e sua continuidade como Cauda Equina, sendo o risco aumentado ao escolher espaços intervertebrais mais craniais. 

Anatomia neuroaxial e a linha de Tuffier. Fonte: Chagg
Anatomia neuroaxial e a linha de Tuffier. Fonte: Chagg

Ao progredir com a agulha e eventualmente encontrar o espaço subaracnóideo, deve-se confirmar a localização pelo refluxo de LCR. Então, injeta-se a substância anestésica e oclui-se o local da punção para evitar extravasamento de LCR. Essa saída de líquido é a responsável por uma das complicações mais comuns da Raquianestesia, que é a cefaleia pós-punção lombar.

Vantagens e desvantagens

As vantagens da Raquianestesia se baseiam no satisfatório controle da dor peri-operatória e pós-operatória através da inibição do estímulo periférico que é capaz de induzir a sensibilização central. Apesar dos dados ainda limitados, revisões da Cochrane mostram dados positivos sobre o uso da anestesia raquimedular e a prevenção de dor crônica após procedimentos cirúrgicos.

Ademais, a REMIT (Resposta endócrino-metabólica induzida por trauma) é atenuada perante o uso dessa modalidade anestésica. Lembrando que esse mecanismo fisiológico se resume por um conjunto de alterações metabólicas em decorrência do trauma agudo (nesse caso, a cirurgia) em busca do retorno da homeostase hemodinâmica e celular. Os trabalhos já realizados sobre o tema apresentam menores variações dos níveis séricos de adrenalina, noradrenalina, glicose, cortisol, aldosterona e ACTH. Essa redução da amplitude da REMIT diminui a possibilidade de exacerbação dessa resposta de defesa.

Além disso, o bloqueio do SNS secundário à Raquianestesia já mostrou melhoras quanto à perfusão tanto central quanto periférica. Isso acarreta em diminuição da ocorrência de eventos tromboembólicos durante a cirurgia em comparação à cirurgia geral.

Desvantagens

Em contrapartida, as desvantagens da Anestesia Raquidiana ainda estão presentes. A hipotermia é uma complicação comum às anestesias do neuroeixo e isso acontece pela redistribuição do fluxo sanguíneo pela vasodilatação do bloqueio simpático. Essa queda de temperatura corporal pode ter consequências danosas em cenário cirúrgico, como o aumento do gasto de oxigênio pelo miocárdio, distúrbios de coagulação e maior risco de infecção.

As desvantagens também ocorrem pelo risco da técnica de punção, como um possível hematoma subdural que gera compressão medular potencialmente irreversível. Esse risco é diretamente proporcional à idade do paciente que está sendo submetido ao procedimento, pois na faixa etária mais avançada se faz mais uso de drogas anti-hemostáticas e outras tromboprofilaxias.

Outra complicação comum é a cefaleia pós-punção da dura-máter (CPPD), que acontece após a perda liquórica pela perfuração em que foi injetado o anestésico. A incidência da CPPD está diretamente relacionada ao calibre da agulha de punção e à experiência do anestesista. A cefaleia da CPPD tende a piorar em posição ortostática e melhorar ao decúbito.

Conclusão

A Raquianestesia é um ótimo método para operações de grande porte. Ela promove alívio sensitivo e álgico aos pacientes, promovendo todo o conforto no momento da cirurgia. Ademais, ela vai se basear principalmente na anatomia espinhal e medular para sua realização. Apesar das desvantagens e complicações mais comuns, essas já são bem manejadas e as vantagens a categorizam como um procedimento seguro.

Leia mais: 

FONTES:

  • OLIVEIRA, T. R. DE; LOUZADA, L. A. L. E; JORGE, J. C. Spinal anesthesia: pros and cons. Revista Médica de Minas Gerais, v. 25, 2015.
  • Reis Jr, Almiro dos Homenagem a August Karl Gustav Bier por ocasião dos 100 anos da anestesia regional intravenosa e dos 110 anos da raquianestesia. Revista Brasileira de Anestesiologia [online]. 2008, v. 58, n. 4, pp. 409-424. 
  • DynaMed. Neuraxial Anesthesia. EBSCO Information Services. Accessed November 30, 2022.