As emergências tireoidianas são condições clínicas raras, mas potencialmente fatais, caracterizadas por disfunções hormonais graves que comprometem múltiplos sistemas orgânicos. As principais entidades são a tempestade tireotóxica e o coma mixedematoso (ou mixedema hipotireoidiano), correspondendo aos extremos de hipermetabolismo e hipometabolismo, respectivamente. Ambas requerem diagnóstico clínico rápido e intervenção terapêutica imediata, e sua mortalidade permanece elevada, mesmo em centros terciários. Compreender os mecanismos fisiopatológicos e as diretrizes terapêuticas atualizadas é essencial para o manejo eficiente dessas urgências endócrinas.
Emergências tireoidianas: o que são e por que importam?
As emergências tireoidianas representam descompensações agudas das disfunções crônicas da tireoide. São, via de regra, desfechos de um distúrbio tireoidiano preexistente mal controlado, com fatores precipitantes bem definidos — como infecções, cirurgias, trauma, IAM, ou suspensão abrupta da medicação. A despeito de sua baixa incidência, elas carregam prognóstico sombrio se não prontamente tratadas: a mortalidade da tempestade tireotóxica pode ultrapassar 20%, enquanto a do coma mixedematoso pode atingir até 60%.
Tempestade tireotóxica: quando o hipertireoidismo vira emergência
Quadro clínico
O quadro clínico é exuberante e resulta da ação exacerbada dos hormônios tireoidianos, especialmente o T3, nos sistemas cardiovascular, neurológico e gastrointestinal. Os principais achados incluem febre alta (com frequência > 38,5ºC), taquicardia acentuada (frequentemente > 140 bpm), podendo evoluir com fibrilação atrial, além de hipertensão sistêmica ou choque distributivo. Alterações do estado mental são comuns e vão desde ansiedade e agitação psicomotora até delírio, psicose ou coma.
Também são frequentemente observados sintomas gastrointestinais (náuseas, vômitos, diarreia), icterícia por disfunção hepática e sinais de insuficiência cardíaca e respiratória. A avaliação clínica sistemática é essencial para o diagnóstico precoce, uma vez que a tempestade tireotóxica é uma condição de diagnóstico eminentemente clínico.
Diagnóstico clínico (Critérios de Burch-Wartofsky)
Para auxiliar na estratificação diagnóstica, o escore de Burch-Wartofsky é amplamente utilizado. Trata-se de um sistema de pontuação baseado em achados clínicos e em fatores precipitantes. Pontuações ≥ 45 indicam tempestade tireotóxica altamente provável, enquanto valores entre 25 e 44 sugerem o diagnóstico.
O escore considera parâmetros como temperatura corporal, alterações do sistema nervoso central (desde letargia até coma), disfunções gastrointestinais/hepáticas, frequência cardíaca, presença de arritmias, sinais de insuficiência cardíaca congestiva e a identificação de fatores precipitantes. Apesar de não substituir o julgamento clínico, o escore é uma ferramenta útil no pronto reconhecimento da gravidade da síndrome.
Tratamento da tempestade tireotóxica
O tratamento da tempestade tireotóxica deve ser iniciado imediatamente e de forma integrada, com o objetivo de interromper a síntese e a liberação de hormônios tireoidianos, bloquear seus efeitos periféricos e tratar complicações sistêmicas. A primeira etapa é a administração de antitireoidianos, preferencialmente o propiltiouracil (PTU), que deve ser utilizado em dose de ataque de 600 a 1.000 mg VO, seguido de 200–300 mg a cada 4 horas.
O PTU é preferido ao metimazol neste contexto por também inibir a conversão periférica de T4 em T3. Cerca de uma hora após a administração do antitireoidiano, deve-se administrar iodo inorgânico (solução de Lugol: 8 gotas VO a cada 8 horas ou iodeto de potássio), para bloquear a organificação e a liberação de hormônios já formados pela glândula.
O bloqueio adrenérgico é realizado com betabloqueadores não seletivos, sendo o propranolol o fármaco de escolha, em dose de 60–80 mg VO a cada 6 horas, ou 1–2 mg EV em bolus a cada 15 minutos até controle da frequência cardíaca. Em pacientes com contraindicações ao propranolol, como asma grave, pode-se utilizar bloqueadores seletivos ou alternativas como diltiazem. A corticoterapia com hidrocortisona (100 mg EV a cada 8 horas) é indicada tanto para inibir a conversão periférica de T4 em T3 quanto para cobrir eventual insuficiência adrenal relativa. O suporte clínico intensivo inclui hidratação venosa, correção de distúrbios eletrolíticos, controle de temperatura, antibioticoterapia empírica (quando houver suspeita de infecção), além de suporte ventilatório e hemodinâmico, quando necessário.
Veja também:
Mixedema hipotireoidiano: a crise silenciosa
Quadro clínico e Diagnóstico

No extremo oposto do espectro funcional da glândula tireoide, o coma mixedematoso representa a forma mais grave do hipotireoidismo descompensado. Trata-se de uma condição rara e extremamente letal. Diferentemente da tempestade tireotóxica, o mixedema evolui de maneira insidiosa e silenciosa, predominando em indivíduos idosos, especialmente mulheres, com hipotireoidismo pré-existente não tratado ou em uso irregular de levotiroxina. Fatores precipitantes incluem infecções, hipotermia ambiental, sedativos, trauma e infarto agudo do miocárdio.
O quadro clínico é dominado por sinais de hipometabolismo acentuado. Os pacientes geralmente se apresentam com hipotermia (frequentemente < 35ºC), bradicardia, hipotensão, hipoventilação, hiponatremia dilucional, hipoglicemia, e rebaixamento progressivo do nível de consciência, que pode evoluir para estupor e coma.
Outros achados incluem fácies mixedematosa, macroglossia, pele seca, mixedema, além de derrames cavitários (pleural, pericárdico e peritoneal). Esses pacientes costumam ter depressão da resposta ventilatória à hipercapnia e hipoxemia, o que frequentemente exige suporte ventilatório invasivo. Exames laboratoriais revelam T4 livre muito reduzido, TSH elevado (exceto em hipopituitarismo), hiponatremia, hipercapnia, acidose respiratória e elevação de enzimas musculares e hepáticas.

Tratamento do mixedema hipotireoidiano
O tratamento do mixedema deve ser iniciado sem atraso, com reposição hormonal imediata e suporte intensivo. A via intravenosa é preferida, dada a absorção imprevisível por via oral nesses pacientes críticos, contudo, no Brasil a apresentação venosa não se encontra disponível no mercado. A levotiroxina (T4) deve ser administrada em dose de ataque de 500 mcg VO, seguido de manutenção de 50-150 mcg ao dia. Em alguns protocolos, associa-se também triiodotironina (T3), principalmente em casos com hipotermia e coma profundo. A terapia combinada T4/T3 pode acelerar a recuperação, mas deve ser usada com cautela, principalmente em cardiopatas.
Devido ao risco de insuficiência adrenal concomitante, recomenda-se iniciar hidrocortisona 100 mg EV a cada 8 horas até que a função adrenal seja adequadamente avaliada. O suporte intensivo envolve manejo de via aérea e ventilação mecânica, aquecimento passivo (cobertores térmicos, ar aquecido), correção de hipoglicemia, distúrbios hidroeletrolíticos e infecções, além de monitorização rigorosa em unidade de terapia intensiva.
As emergências tireoidianas são síndromes endócrinas graves e desafiadoras, com elevada letalidade. Reconhecimento clínico precoce e tratamento agressivo são essenciais para reduzir a mortalidade. A tempestade tireotóxica exige supressão da síntese, liberação e ação periférica dos hormônios tireoidianos, enquanto o mixedema impõe rápida reposição hormonal e suporte intensivo. A atuação do médico de emergência deve ser rápida, sistematizada e baseada em evidências.
Comparativo rápido: Tempestade Tireotóxica x Mixedema
Emergências Tireoidianas - Perguntas Frequentes
1. Posso usar metimazol ao invés de PTU na tempestade tireotóxica?
Sim, porém o PTU é preferido inicialmente por também inibir a conversão periférica de T4 em T3. O metimazol é mais potente e seguro a longo prazo, mas tem início de ação mais lento e não bloqueia a desiodação periférica.
2. Quando suspeitar de mixedema em um paciente idoso?
Sempre que um idoso apresentar rebaixamento do nível de consciência, bradicardia inexplicada, hipotermia e hiponatremia — especialmente com história de hipotireoidismo ou uso irregular de levotiroxina.
Leia mais:
- Hipertireoidismo: o que é, sintomas e formas de tratamento
- Câncer de tireoide: tipos, sintomas e tratamento
- Nódulo na tireoide: causas, tipos, como avaliar e tratamento
- Pneumonia viral: diagnóstico, conduta e pontos-chave para a prova
- Derrame pleural: diagnóstico diferencial e abordagem para provas
FONTES:
- Medicina de Emergência: abordagem prática. 18ª ed. São Paulo: Manole; 2024.
- Manual do Residente de Clínica Médica. 3ª ed. São Paulo: Manole; 2023.
- Ross DS et al. 2023 ATA Guidelines for Management of Hyperthyroidism and Other Causes of Thyrotoxicosis. Thyroid. 2023.



