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Publicado em
18/1/24

Traumatismo raquimedular: causas, como identificar e tratamento

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Traumatismo raquimedular: causas, como identificar e tratamento

O traumatismo raquimedular (TRM) pode acarretar perda ou comprometimento das funções motoras e sensitivas do paciente. Por isso, é considerada uma catastrófica causa de inabilidade na prática médica. No Brasil, estima-se que a incidência seja de 8.6 milhões por ano no trauma cervical, e de 22.6 milhões por ano no trauma raquimedular geral.

O alto índice de casos, associados à alta morbimortalidade, fazem com que sejam fundamentais as medidas de prevenção a acidentes, bem como o treinamento das equipes de atendimento pré-hospitalar e das salas de emergência. Neste post iremos abordar o traumatismo raquimedular, como identificar e manejar!

O que é traumatismo raquimedular?

O traumatismo raquimedular é o nome dado a qualquer trauma na coluna vertebral, podendo acarretar ou não em danos neurológicos, transitórios ou irreversíveis. Assim, pode acometer ossos, ligamentos e estruturas neurológicas. Assim como também acomete a coluna cervical (55%), torácica (15%), lombar (15%) ou sacral (15%). 

Imagem mostrando a coluna vertebral e como ela se divide
Coluna vertebral e suas divisões. Fonte: Blog Dr. Alberto Gotfryd

No Brasil, as principais causas de traumas de coluna cervical são as quedas (40%), seguidas pelos acidentes automobilísticos (22%). O sexo masculino é um fator de risco para o trauma raquimedular, sendo responsáveis por 88% dos casos. Também são fatores de risco importantes os praticantes de esportes radicais (8%), como o futebol, rugby, surf e ginástica olímpica.

O TRM apresenta dois picos de incidência, sendo o primeiro entre 16 e 30 anos, seguido por outro pico aos 60 anos. Exemplo disso são os acidentes automobilísticos, que atingem mais frequentemente os pacientes jovens, enquanto as quedas, os idosos.

Fisiopatologia

A medula espinhal é responsável pelas funções motoras e sensitivas, bem como pelo controle da temperatura, dor e regulação hemodinâmica. A medula realiza essas funções através dos tratos e sistemas simpático e parassimpático. Assim, o desfecho do traumatismo raquimedular dependerá do nível da lesão na medula.

Exemplo disso são as lesões em C2, que cursam com evolução fatal mesmo antes do atendimento hospitalar. Já as lesões em C3-C7 são responsáveis por inabilidades importantes, como a tetraplegia e disfunção respiratória grave.

E mais, o choque neurogênico, fenômeno hemodinâmico caracterizado por disfunção autonômica severa, ocorre devido à interrupção do controle simpático na lesão medular aguda, raramente ocorrendo em lesões abaixo de T6. Além disso, as lesões medulares tendem a estender-se em um a dois níveis adjacentes, devido à presença de radicais livres, edema vasogênico e alterações hemodinâmicas locais.

Principais tipos de trauma raquimedular

As lesões decorrentes do trauma raquimedular podem ser classificadas em completas ou incompletas, ou ainda em primárias ou secundárias

Lesões completas

As lesões completas cursam com a perda total das funções motoras e sensitivas, abaixo do nível da lesão. Nesse tipo, ambos os lados são acometidos igualmente

Lesões incompletas

Já quando há alguma preservação motora e/ou sensitiva abaixo do nível da lesão, essa é classificada como incompleta. Nesse caso, os déficits podem ser assimétricos. Por isso, nas lesões incompletas pode haver comprometimento exclusivamente motor com preservação das funções sensitivas, por exemplo.

Lesões primárias

As lesões primárias são causadas por rupturas, transecções ou distrações dos elementos neurais. Dessa forma, normalmente ocorrem após fraturas e/ou luxações da coluna vertebral, como também por ferimentos por arma de fogo ou armas brancas

Lesões secundárias

Já as lesões secundárias surgem dias ou semanas após o trauma, e ocorre devido sangramento, edema ou inflamação decorrente desse evento.

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Como identificar o traumatismo raquimedular?

As lesões medulares nem sempre são óbvias. Déficits e paralisias podem surgir gradualmente, devido a hemorragias ou edema em torno da medula. Em pacientes vítimas de acidente com alta energia, quedas de escadas e outros locais elevados, bem como mergulho em águas rasas, o traumatismo raquimedular deve sempre ser presumido e o uso de colar cervical é obrigatório

Os principais sinais e sintomas indicativos de lesão medular são: dor intensa ou sensação dolorosa, plegias (comumente bilaterais) de membros superiores e/ou inferiores, hipoestesia ou anestesia, e disfunção dos intestinos e bexiga (incontinência ou retenção). Além de hiperreflexia ou espasmos, alteração da função sexual, sensibilidade sexual e/ou fertilidade, dificuldade ou insuficiência respiratória e incapacidade de tossir.

Além dos pacientes vítimas de acidente com alta energia, existem outras indicações, ou sinais de alerta para uso da imobilização cervical. São elas: 

  • Alteração do nível de consciência;
  • Dor intensa na região posterior do pescoço;
  • Sensação de pressão na cabeça, fraqueza;
  • Incoordenação ou paralisia de qualquer parte do corpo;
  • Dormência, formigamento ou anestesia nas mãos, pés e/ou dedos;
  • Comprometimento respiratório após trauma;
  • Posições anômalas da região cervical (rotação latero-lateral, flexões, extensões);
  • Intoxicados por álcool e/ou drogas.

A imobilização não é necessária para os pacientes que preenchem os seguintes critérios: estão alertas, deambulam, menores de 65 anos, sem sinais e sintomas neurológicos, sem traumas associados e que movimentam o pescoço em 45 graus para a direita e esquerda sem restrições.

Choque 

No caso do choque neurogênico, o quadro clínico é caracterizado por hipotensão, bradicardia relativa, vasodilatação periférica e hipotermia. Já no choque medular, o paciente irá apresentar perda completa das funções neurológicas abaixo do nível da lesão, incluindo os reflexos e tônus retal. Assista a esse vídeo para aprender, na prática, como as provas de Residência cobram esse assunto!

Como funciona o diagnóstico?

O diagnóstico precoce influi muito no prognóstico do indivíduo. Dessa forma, o objetivo do profissional que atua na sala de emergência é estabelecer o diagnóstico o mais rapidamente possível, iniciando o tratamento para prevenir déficits neurológicos. Além disso, é imprescindível realizar a diferenciação do choque hemorrágico e do choque neurogênico a partir da verificação do nível medular acometido. Caso esteja abaixo de T6, considera-se que o choque seja hemorrágico até que se prove o contrário. 

Assim como todo paciente vítima de trauma, a abordagem baseia-se no ABCDE do trauma, sendo a colocação do colar cervical parte da letra “A”. Após a realização do ABCDE, o diagnóstico é primeiramente feito de forma presuntiva, baseado nos fatores de risco, sinais de alarme e quadro clínico. 

Para confirmação diagnóstica, naqueles hemodinamicamente estáveis, pode ser feito exame físico detalhado, com análise neurológica e estudo radiográfico. O exame físico consiste em examinar os 28 dermátomos bilateralmente, tanto na parte motora como na sensitiva, e, assim, classificar a lesão como completa ou incompleta. Os exames de imagem que podem ajudar incluem: radiografia e tomografia de coluna.

Imagem mostrando os dermátomos e os miótomos
Dermátomos e miótomos. Fonte: Drª Camila Cotrim 

Qual o tratamento?

Estima-se que entre 3% e 25% das lesões na medula espinhal ocorram após o evento traumático inicial, durante a abordagem local ou transporte. Assim, o tratamento do paciente com traumatismo raquimedular começa no ambiente pré-hospitalar. A não identificação do trauma e a sua abordagem rápida e correta podem levar à piora do dano neurológico, com aumento da inabilidade e invalidez.

Para além da presunção da existência do TRM, é necessário realizar a correta mobilização da coluna, mantendo-a alinhada em seu eixo, e transporte da vítima no manejo pré-hospitalar. Assista ao vídeo abaixo, que explica como fazer a colocação do colar cervical:

Além disso, 20% dos traumas raquimedulares acometem múltiplos segmentos não contínuos na medula, evidenciando ainda mais a importância da imobilização. Sintomas como a insuficiência respiratória e a hipotensão devem ser tratados imediatamente, pois conferem riscos imediatos à vida. Assim, independentemente da causa do choque, a reposição de fluidos deve ser feita com cristaloides, preferencialmente até 2L, a fim de evitar edema pulmonar.

No choque neurogênico, objetiva-se manter a pressão arterial sistólica em torno de 90-100mmHg, e a frequência cardíaca, entre 60-100 bpm, com ritmo sinusal. Em caso de bradicardia significativa, inicia-se o tratamento com atropina. Ademais, busca-se prevenir a hipotermia.

Também recomendam-se outras medidas de suporte como passagem de sonda nasogástrica e analgesia. Pode ser feito metilprednisolona em altas doses, pois é uma medicação neuroprotetora e diminui o edema, porém deve ser iniciada dentro de 8 horas da lesão. Se necessário, deve ser realizado o tratamento cirúrgico, visando o tratamento da instabilidade da coluna vertebral e da compressão dos elementos neurais.

Conclusão

O traumatismo raquimedular é uma condição grave e que pode provocar importante invalidez no paciente. Por isso, reconhecer a importância do manejo desse paciente no atendimento pré-hospitalar é fundamental. A altura mais comumente acometida é a cervical. 

O paciente pode se apresentar com dor intensa na região, diminuição dos reflexos, dos movimentos e da sensibilidade em membros, a depender da altura da lesão. É importante sempre que o paciente seja imediatamente imobilizado com prancha e colar cervical. O tratamento é feito a depender da presença de choque, associado a medidas de suporte e, se necessária, cirurgia.

Leia mais:

FONTES:

  • SUEOKA, J., ABGUSSEN, C. APH - Resgate - Emergência em Trauma. Rio de Janeiro: Elsevier Editora LTDA, 2019
  • ATLS, Advanced Trauma Life Support. 10a Ed, 2018