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20/2/24

Sangramento na primeira metade da gestação: causas e tratamento

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Sangramento na primeira metade da gestação: causas e tratamento

O sangramento na primeira metade da gestação é uma queixa comum e sintoma responsável por inúmeras consultas obstétricas de urgência. Segundo o Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia, 26% das gestações acabam em abortos espontâneos no primeiro trimestre com sangramento vaginal. 

A hemorragia obstétrica de forma geral é a principal causa de mortalidade materna no mundo e é essencial o seu entendimento para garantir a qualidade do atendimento da paciente com esse tipo de intercorrência. Neste post iremos abordar as principais causas de sangramento vaginal na primeira metade da gravidez, como diagnosticar e como manejar!

Causas de sangramento na primeira metade da gestação

O sangramento vaginal na primeira metade é todo aquele sangramento vaginal que ocorra na gestante até a 20ª semana de gestação. Suas principais causas são: aborto, gravidez ectópica e doença trofoblástica gestacional. Acomete de 20% a 40% das mulheres, podendo ser leve ou intenso, intermitente ou constante, indolor ou doloroso. 

Abortamento

O abortamento é definido por perda do feto antes de 20 semanas ou com menos de 500g. A etiologia mais comum são as anomalias cromossômicas, mas também pode ser causado por infecções perinatais, uso de drogas, doenças maternas etc. Pode ser classificado em: ameaça de aborto, aborto inevitável, aborto incompleto, aborto completo, aborto infectado e aborto retido

Gravidez ectópica

Imagem mostrando a diferença entre uma gravidez típica e uma gravidez ectópica
Gravidez ectópica. Fonte: Clue 

A gravidez ectópica é uma outra condição responsável por causar sangramento na primeira metade da gestação, na qual a implantação e o desenvolvimento do concepto ocorrem fora da cavidade uterina, sendo a topografia mais comum a tubária. Fatores de risco para a gravidez ectópica incluem antecedente de gravidez ectópica, uso de dispositivo intrauterino ou minipílula, reprodução assistida, infecção pélvica, infecções sexualmente transmissíveis e cirurgia tubária prévia. 

Doença trofoblástica gestacional

A doença trofoblástica gestacional é um amplo espectro de condições caracterizadas por proliferação anormal do tecido trofoblástico e diferentes potencialidades para invasão local e metástase. Varia de mola hidatiforme parcial não complicada, benigna, até coriocarcinoma metastático. 

Pode se manifestar das seguintes formas:

  • Mola hidatiforme completa 🡪 Hiperplasia difusa do trofoblasto, com todas as vilosidades alteradas. Não há desenvolvimento de feto ou anexos e o risco de progressão para malignidade é de 20%.
  • Mola hidatiforme parcial 🡪 Hiperplasia do trofoblasto, com edema focal e fibrose do estroma e existência de feto malformado. O risco de progressão para malignidade é de 5%.
  • Mola invasora 🡪 Forma persistente da mola hidatiforme.
  • Coriocarcinoma 🡪 Forma maligna. Grande potencial para metástase. 
Foto exemplificando a mola hidatiforme
Mola hidatiforme parcial. Fonte: FEBRASGO, 2019

Diagnóstico do sangramento na primeira metade da gestação

Ao avaliar uma gestante com queixa de sangramento vaginal, é importante classificar bem clinicamente esse sangramento, com sintomas associados (como dor), antecedentes menstruais e a realização de ultrassonografia precoce. A queixa de dor intensa ou sangramento maior do que fluxo menstrual habitual é associada a maior risco de perda gestacional.

No exame físico, deve-se avaliar se o paciente encontra-se instável hemodinamicamente, grau de dor e sangramento. Presença de dor na linha média de abdome sugere cólica uterina da perda gestacional, enquanto dor na fossa ilíaca sugere gravidez ectópica

Deve ser feito o exame especular, buscando visualizar orifício externo do colo uterino, visualizar coágulos e produtos da concepção, em caso de aborto. No toque bimanual, deve ser avaliado o tamanho uterino, a dilatação cervical e qualquer sensibilidade pélvica. Se for mais de 12 semanas, pode ser buscado a ausculta dos batimentos fetais com o Doppler. 

Nos exames laboratoriais, deve ser solicitada a fração beta da gonadotrofina coriônica (beta-Hcg). A queda nos seus valores é consistente com gestação não viável e ascensão muito lenta com gravidez ectópica. Pode ser solicitada a medida isolada da progesterona, pois se inferior a 6 ng/ml já excluiria gravidez viável. 

A ultrassonografia transvaginal é o principal exame. Ela é capaz de localizar gravidez e, se beta-HCG maior que 3000 mUI/ml, espera-se já visualizar o saco gestacional. A gravidez é considerada não viável quando o feto não for visível no saco gestacional com diâmetro médio maior que 25 mm, ou polo fetal visível com comprimento crânio caudal maior do que 7 mm sem visualização de batimentos cardíacos.

Veja também:

Aborto

Forma clínica Sangramento Cólicas Volume uterino Colo USG
Aborto Discreto Fracas Compatível com IG Fechado Variáveis
Aborto inevitável Moderada a grave Fortes Compatível com IG ou reduzido Dilatado Saco gestacional alterado/colo curto e aberto
Aborto incompleto Abundante com restos Moderada a forte Menor do que esperado para IG Dilatado Conteúdo amorfo
Aborto completo Ausente ou mínimo Ausentes Menor do que esperado para IG Fechado Útero vazio, endométrio fino
Aborto infectado Pequeno, com restos e odor fétido Fortes com febre Menor do que esperado, amolecido, doloroso Dilatado Variáveis
Aborto retido Ausente Ausentes Menor do que esperado para IG Fechado Embrião ausente ou com 5mm
Tipos de aborto e suas manifestações clínicas. Fonte: USP

Como dito anteriormente, o aborto pode ser classificado em diversos tipos. Cada tipo apresenta manifestações clínicas específicas e requerem um tratamento específico. 

Ameaça de aborto

A ameaça de aborto é o sangramento vaginal com gravidez intrauterina viável e colo impérvio. É uma situação frequente, raramente necessitando de transfusão sanguínea. O sangramento geralmente é discreto, associado a dor leve

Aborto inevitável

O aborto inevitável é aquele no qual o sangramento cursa com dilatação cervical, sem perda de material uterino e com feto ainda vivo. Ele costuma ser moderado a grave, com dores fortes e útero reduzido. 

Abortamento incompleto

Já o abortamento incompleto é aquele em que há perda do material intra uterino, porém a USG ainda mostra restos ovulares na cavidade uterina. O sangramento é abundante com restos ovulares, a dor é moderada a forte e útero menor do que esperado para idade gestacional.

Abortamento completo

O abortamento completo é aquele em que existe sangramento vaginal com total eliminação do conteúdo intra uterino, sendo mais comum em gestações com menos de 12 semanas. O sangramento costuma ser ausente ou mínimo, muitas vezes sem dor associada

Abortamento retido

O abortamento retido é aquele no qual não são detectados batimentos cardíacos fetais, mas a gestação permanece em cavidade uterina e não há dilatação cervical. Normalmente, o sangramento e a dor estão ausentes.

Aborto infectado

Por fim, existe o aborto infectado. É todo aquele aborto associado a quadro de infecção. O sangramento é pouco, porém associado a odor fétido. A paciente pode ter febre e queda do estado geral, associado a dores fortes. 

Gravidez ectópica

O diagnóstico desta causa de sangramento da primeira metade da gestação pode ser difícil, já que as manifestações clínicas variam de intensidade. No geral, o quadro clínico é de dor abdominal ou pélvica bem localizada, de intensidade variável, associado a sangramento vaginal geralmente leve. Se ocorrer ruptura, a dor se torna intensa, difusa e associada a sinais e sintomas de hipovolemia

O toque vaginal mostra útero de volume próximo ao normal, colo uterino fechado e os anexos podem ser dolorosos à palpação. Na gestação ectópica rota, o exame abdominal mostra dor importante à palpação e o sinal de Blumberg positivo, indicando irritação do peritônio parietal por sangue. O exame pélvico é dificultado pela dor da paciente e há muito desconforto à manipulação do fundo de saco vaginal posterior (Sinal de Proust ou Grito de Douglas).

O beta-HCG da gestação ectópica tem sua concentração sérica inferior a de uma gestação tópica de mesma idade gestacional e não sofre duplicação de seu valor em um dia e meio, como ocorre na gestação normal. A USG transvaginal é o exame de escolha para o diagnóstico. 

Ultrassonografia evidenciando a gravidez ectópica
Gravidez ectópica em USG. Saco gestacional entre ovário direito e útero. Fonte: Dr. Bruno Amaral - Facebook

Doença trofoblástica gestacional

O diagnóstico de DTG, uma outra importante causa de sangramento na primeira metade da gestação, pode ser aventado quando a mulher em idade reprodutiva se queixa de sangramento genital de volume variável, na maioria das vezes persistente e dor em cólica em hipogástrio. Além de crescimento uterino rápido e eliminação genital de material amorfo vesicular

É comum a história de náuseas e vômitos importantes (hiperêmese), hipertensão associada à proteinúria (mimetizando pré eclâmpsia de início precoce) e sintomas de hipertireoidismo, incluindo perda de peso.

No exame obstétrico, é comum o achado de altura uterina maior que a esperada para a idade gestacional, ausência de batimentos cardíacos e movimentos fetais. O exame especular permite avaliação da quantidade e local de sangramento e observação de vesículas (“em cachos de uva”) no conteúdo vaginal.

Na USG é possível observar a presença de material amorfo e heterogêneo, com áreas anecóicas, a “tempestade de neve”. Já na mola incompleta, o material fetal também pode ser evidenciado.

Ultrassonografia mostrando a mola hidatiforme
USG de mola hidatiforme completa, no qual é possível ver as vesículas (“bolinhas”). Fonte: FEBRASGO

Como é feito o tratamento do sangramento na primeira metade da gestação?

Aborto

A conduta na ameaça de aborto é expectante, orientando repouso e retorno se houver piora. Já no aborto completo, após a confirmação e estabilização, a paciente deve receber alta. No aborto inevitável e no aborto incompleto, a paciente deve ser estabilizada, após ser realizada a resolução da gestação por esvaziamento uterino, por meio de aspiração manual intrauterina (AMIU) se a gestação tiver menos de 12 semanas e curetagem se tiver mais de 12 semanas, utilizando misoprostol para dilatação cervical. 

No aborto retido, por ser assintomático, dificilmente é atendido na urgência. Após receber diagnóstico, a paciente deve ser encaminhada para realização de esvaziamento uterino. Por fim, no aborto infectado, é feito a mesma conduta do aborto incompleto, com antibioticoterapia associada. O esquema preferencial de tratamento é a associação da gentamicina (1,5mg/kg/dose a cada 8 horas) com a clindamicina (900 mg de 8/8 horas).

Gravidez ectópica

O tratamento medicamentoso é feito por meio do metotrexato (MTX), na dose de 50 mg/m2 por via intramuscular. Os principais preditores de sucesso desse tratamento são valores iniciais baixos de beta-Hcg e declínio do mesmo em 48h. O metotrexato age nas células trofoblásticas de divisão rápida, impedindo sua multiplicação. 

Essa modalidade de tratamento é indicada em casos de estabilidade hemodinâmica, massa anexial de diâmetro menor que 3,5 cm, beta-hCG inicial menor que 5000 mUI/ml, ausência de dor abdominal e desejo de gravidez futura.

Após a administração da droga, é feito um acompanhamento com dosagem de beta-Hcg nos 4° e 7°dias. Se ocorrer redução do valor maior que 15%, indica bom prognóstico. Uma redução menor que 15%, indica nova dose do MTX (podendo ser feita no máximo 4 doses). O aumento no valor indica necessidade de cirurgia.

O tratamento cirúrgico é a conduta padrão para tratamento de gravidez ectópica. Pode ser realizado: salpingectomia laparoscópica, salpingectomia por laparotomia ou salpingostomia. 

Essas cirurgias são indicadas para pacientes com prole constituída, em casos de lesão tubária irreparável, em casos de sangramento persistente, quando há recidiva de gravidez ectópica na mesma tuba  e quando os títulos do beta-hCG são elevados. A salpingostomia, porém, é uma cirurgia mais conservadora, indicada para pacientes com desejo de preservar a fertilidade.

Doença trofoblástica gestacional

O tratamento da mola hidatiforme baseia-se no esvaziamento uterino e no seguimento pós-molar, com o objetivo de diagnosticar precocemente caso haja evolução para Neoplasia Trofoblástica Gestacional. O esvaziamento pode ser feito pela AMIU (Aspiração Manual Intrauterina) ou pela curetagem. Em mulheres com prole definida, o tratamento com a histerectomia precisa ser considerado, porque reduz as chances de recorrência e de malignidade. 

Assim, o seguimento pós-molar é feito a partir da dosagem sérica semanal ou quinzenal do hormônio, até zerar os valores. Depois, realiza-se a dosagem sérica mensalmente por seis meses.  Nesse período, a mulher deve realizar método anticonceptivo. Se houver aumento de 10% ou mais, é considerado recidiva. 

Conclusão

O sangramento vaginal na primeira metade da gravidez é uma queixa comum nas emergências obstétricas. Suas principais causas são: abortamento, gravidez ectópica e doença trofoblástica gestacional. O quadro de cada uma dessas entidades difere, assim como suas condutas, por isso, é de grande importância o entendimento do diagnóstico diferencial de cada uma delas. 

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