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27/9/22

Intolerância alimentar: diferença da alergia alimentar, tipos e quadro clínico

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Intolerância alimentar: diferença da alergia alimentar, tipos e quadro clínico

A intolerância alimentar é bastante comum na população geral, sendo reportada por 15 a 20% dos indivíduos. Entretanto, nem sempre os pacientes sabem distinguir a “intolerância alimentar” da “alergia alimentar”, sendo esses conceitos confusos até mesmo para estudantes e médicos.

Dessa forma, o EMR preparou mais um texto para te ensinar tudo que você precisa saber sobre a intolerância alimentar, e como diferenciá-la da alergia alimentar. Portanto, não perca mais um post para contribuir com a sua formação!

O que é Intolerância Alimentar?

A intolerância alimentar é a dificuldade de digerir ou metabolizar determinado alimento. Diferentemente das alergias, a intolerância não é mediada por uma reação imunológica do organismo. Assim, pode ser classificada como uma reação tóxica, farmacológica ou metabólica/enzimática. Ou ainda, como uma reação irritativa ou por causa não definida. Observe o diagrama abaixo.

Diagrama com as principais classificações das intolerâncias alimentares. Fonte: Food Allergy and Intolerance: A Narrative Review on Nutritional Concerns, 2021
Diagrama com as principais classificações das intolerâncias alimentares. Fonte: Food Allergy and Intolerance: A Narrative Review on Nutritional Concerns, 2021

As intolerâncias “sem causa definida” são assim classificadas porque não podem ser explicadas pelos mecanismos fisiopatológicos atualmente conhecidos para as intolerâncias alimentares. Exemplo dessas são as que ocorrem devido à síndrome do intestino irritável (SII). Para mais, as intolerâncias alimentares nos indivíduos com SII são ainda mais comuns do que na população geral, sendo reportadas em 50 a 80% desses pacientes.

Principais tipos

Existem diversos tipos de substâncias nos alimentos que podem gerar intolerância. Apresentaremos aqui algumas das mais comuns, e que têm uma maior evidência científica de que, efetivamente, provocam intolerância alimentar.

Deficiência de lactase (intolerância à lactose)

A deficiência da lactase é uma das mais comuns intolerâncias metabólicas/enzimáticas. A lactase é a enzima que digere o carboidrato lactose, e sua deficiência é rara em crianças com menos de 6 anos, apresentando maior prevalência com o avanço da idade.

Para mais, é menos comum em descendentes de europeus, e mais prevalente em indivíduos descendentes de africanos e asiáticos. A intolerância à lactose pode causar sintomas como flatos, náusea e inchaço. E ainda, dor abdominal e diarreia. Além disso, esses sintomas comumente surgem 30 minutos após a ingestão do alimento com lactose

Intolerância à frutose

Este outro tipo de intolerância alimentar também se apresenta com inchaço, flatos ou diarreia, após ingestão de frutas ou adoçantes à base de frutas.

Deficiência de aldeído desidrogenase

A aldeído desidrogenase é uma enzima que catalisa a oxidação de aldeídos. Assim, é importante para a metabolização do acetaldeído, produto primário do etanol. O acetaldeído provoca liberação de catecolaminas pelo sistema simpático e, por isso, causa vasodilatação. Assim, pacientes com deficiência de aldeído desidrogenase - comumente descendentes de asiáticos - apresentam intenso rubor após consumo de álcool.

Paciente com rubor facial após consumo de álcool devido a deficiência do aldeído desidrogenase. Fonte: BlogScience UNICAMP
Paciente com rubor facial após consumo de álcool devido a deficiência do aldeído desidrogenase. Fonte: BlogScience UNICAMP

Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) 

A glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) é uma enzima presente nas hemácias, responsável por proteger as células vermelhas do estresse oxidativo. A deficiência da G6PD é uma desordem hereditária, que ocorre devido a defeitos genéticos na transcrição dessa enzima.

Assim, pode se manifestar com uma anemia hemolítica - mais comum em homens, por ser um gene ligado ao cromossomo X - após estímulos que causam estresse oxidativo. Exemplo desses estímulos são o consumo da fava de feijão, legumes e amoras. E ainda, de água tônica e algumas medicações, como a nitrofurantoína e a dapsona.

Intolerância a carboidratos fermentáveis de cadeia curta

São sintomas comuns a pacientes com intolerância a carboidratos fermentáveis de cadeia curta a flatulência, dor abdominal, inchaço e diarreia, ocorrendo após ingestão de alimentos contendo oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos e monossacarídeos. Acredita-se que esse tipo de intolerância alimentar seja mais prevalente em pacientes com SII.

Sensibilidade à sulfitos

Acredita-se que esse tipo de intolerância alimentar seja mais prevalente em pacientes asmáticos, que podem apresentar episódios de sibilo quando expostos ao dióxido de enxofre (sulfito). Apesar disso, acredita-se que reações alérgicas sejam raras. São exemplos de alimentos que contém sulfitos no vinho branco e as frutas secas.

Fisiopatologia

Diversos mecanismos estão por trás da intolerância alimentar, desde as desordens genéticas, até as deficiências adquiridas. Neste post, daremos ênfase à fisiopatologia da deficiência da lactase, que como descrito anteriormente, é um dos tipos mais comuns.

Fisiopatologia da intolerância à lactose 

O dissacarídeo da lactose consiste em moléculas de galactose e glicose, conectadas por uma ligação glicosídica. A enzima lactase (beta-galactosidase) é responsável por realizar a quebra dessa ligação. Observe a imagem abaixo.

Quebra da lactose pela enzima lactase, tendo como produtos a glicose e a galactose. Fonte: Brasil Escola ‍
Quebra da lactose pela enzima lactase, tendo como produtos a glicose e a galactose. Fonte: Brasil Escola

Assim, é nas bordas em escova do intestino delgado que a hidrólise da lactose ocorre, para que ocorra a absorção da glicose e da galactose. Após a chegada aos cólons, a lactose não digerida pelo intestino delgado é metabolizada por bactérias. Nesse processo, são produzidos gases como hidrogênio (H2), dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4), que têm efeitos na função gastrointestinal. 

É importante notar que, apesar de ser denominada “intolerância” à lactose, o que ocorre na deficiência da lactase é uma má digestão desse carboidrato. Por fim, as formas hereditárias de deficiência da lactase são raras, assim, a maioria das intolerâncias à lactose são adquiridas. Isso porque, após o período de amamentação, a beta-galactosidase é geneticamente programada para diminuir sua transcrição. Resultando assim em uma redução da atividade dessa enzima em indivíduos adultos.  

Além disso, outras condições que podem diminuir a digestão da lactose são as gastroenterites virais, doenças inflamatórias intestinais, cirurgias e o crescimento anormal de bactérias patogênicas nos intestinos.

Apresentação clínica e complicações

Como discutido anteriormente, os sintomas mais comuns nas intolerâncias alimentares são proeminentemente gastrointestinais. Por isso, são comuns aos pacientes intolerantes a algum alimento o excesso de gás, inchaço, dores abdominais e a diarreia. Ademais, na intolerância, a quantidade do alimento ingerido está comumente ligada a severidade dos sintomas, sendo então considerada “dose-dependente”.

Como funciona o diagnóstico?

O diagnóstico do paciente com intolerância alimentar tem início com detalhamento da queixa e dos sintomas associados, bem como avaliação de possível manifestação de atopia. Dessa maneira, um dado que deve elevar a suspeita é a história dos sintomas característicos após ingestão de diversos tipos de alimentos diferentes.

E ainda, o início dos sintomas através do consumo de alguma comida específica preparada em casa, mas que não é manifestada ao consumir alimentos industrializados. Para os pacientes com intolerância à lactose, pode-se pedir ao paciente para evitar alimentos com o carboidrato por 5 a 7 dias, e observar se houve remissão dos sintomas. 

Já a testagem para deficiência da enzima G6PD pode ser indicada para avaliar icterícia neonatal e anemia hemolítica não explicada. Bem como para avaliar indivíduos assintomáticos com risco de deficiência de G6PD, após administração de determinados medicamentos que cursem com estresse oxidativo das hemácias. E mais, também em outras populações, como membros familiares de indivíduos com deficiência da G6PD. 

Tratamento da doença

Restrições dietéticas dos componentes específicos que causam a intolerância podem ser indicados, como nos pacientes com intolerância à frutose e a determinados carboidratos, por exemplo. Levando isso em consideração, aqueles com intolerância à frutose devem ser encorajados a evitar o consumo de alimentos açucarados com frutose, como mel, maçã e peras. E ainda, tâmaras e ameixas secas

Quando o paciente escolher consumir esses alimentos, deve-se orientar sua ingestão durante as refeições. Em paciente com a deficiência de G6PD, o tratamento de base é evitar o estresse oxidativo das hemácias. Deve-se evitar o uso de medicações que possam desencadear a hemólise. Em caso de anemia hemolítica, deve-se retirar o agente causador o mais rapidamente possível e realizar hidratação intravenosa agressiva, bem como transfusão sanguínea em pacientes com anemia severa.

Diferença entre intolerância e alergia?

Alergia alimentar é uma reação imunológica que, na maioria das vezes, ocorre devido a várias formas de intolerância alimentar. A diferença básica entre a alergia e a intolerância alimentar é que a primeira é mediada por uma resposta imunológica e a segunda, não. Portanto, a intolerância alimentar não apresenta os mesmos riscos ao paciente que as alergias alimentares.

Como mencionado anteriormente, as intolerâncias normalmente envolvem o sistema digestivo, e a quantidade de comida ingerida é diretamente proporcional à severidade dos sintomas. Ademais, os sintomas que o paciente intolerante apresenta ao ingerir o alimento são similares em cada exposição.

Já nas alergias alimentares, há um desencadeamento de reações envolvendo a imunoglobulina E (IgE) e, por isso, pequenas quantidades do alimento podem cursar com reações severas. Assim, essas reações são imprevisíveis, tendo potencial de progredir para reações tão graves quanto uma anafilaxia.

Diferenças entre intolerância e alergia alimentar. Fonte: https://laboratoriocarvalho.com.br/teste-de-intolerancia-alimentar-para-59-e-221-alimentos-2/
Diferenças entre intolerância e alergia alimentar. Fonte: Laboratório Carvalho

Todavia, a intolerância alimentar pode mimetizar uma reação alérgica. Algumas diferenças que auxiliam na diferenciação dessas condições são o atraso no aparecimento dos sintomas, a fase sintomática prolongada, e sorologia negativa para IgE, que são características da intolerância alimentar. Para diferenciar melhor entre a alergia e a intolerância alimentar, observe o caso abaixo.

Paciente consegue comer 1 a 2 morangos, sem apresentar sintomas. Entretanto, ao comer uma caixa de morangos, apresenta eritema e inflamação ao redor da boca. Fonte: UpToDate

No caso acima, o paciente provavelmente apresenta uma intolerância alimentar ao morango, e não uma reação mediada por IgE. Isso porque, o surgimento dos sintomas está relacionado com a quantidade do alimento que ele ingere.

Caso apresentasse os mesmos sintomas ingerindo quantidade menor do morango, estaria mais favorável a um caso de alergia alimentar.

Conclusão

A intolerância alimentar é muito frequente, e você precisa ser capaz de diferenciá-la da alergia alimentar, a fim de passar as informações corretas para o seu paciente e tomar as melhores condutas.

Por isso, leia esse texto quantas vezes você precisar!

Leia mais:

FONTES:

  • GARGANO D., APPANNA R., SANTONICOLA A., BARTOLOMEIS F., STELLATO C., CIANFERONI A., CASOLARO V., IOVINO P. Food Allergy and Intolerance: A Narrative Review on Nutritional Concerns. Nutrients. 2021;13(5):16-38. 
  • SCOTT, C. P. Food intolerance and food allergy in adults: An overview. UpToDate. 2022.
  • HEINZ, F. H., HOGENAUER, C. Lactose intolerance and malabsorption: Clinical manifestations, diagnosis, and management. UpToDate. 2022.