A gota e a artrite séptica são consideradas as principais monoartrites agudas. A monoartrite aguda é uma condição frequente nos serviços de emergência, sendo caracterizada por dor, calor, rubor e edema em uma única articulação. Diante desse quadro clínico, é imperativo que o médico primeiramente descarte a possibilidade de uma artrite séptica, dado seu potencial destrutivo e evolução rápida.
Ela é uma emergência ortopédica, responsável por significativa morbidade e mortalidade, especialmente em populações vulneráveis, como idosos, imunodeprimidos e portadores de comorbidades crônicas.
Paralelamente, a artrite gotosa — manifestação clínica inflamatória da gota — também se apresenta com quadro inflamatório agudo e pode mimetizar uma artrite infecciosa, o que impõe um desafio diagnóstico considerável.
A distinção entre essas duas entidades é crucial, pois enquanto a artrite séptica demanda intervenção antimicrobiana imediata e, por vezes, drenagem cirúrgica, a gota é manejada com anti-inflamatórios e medidas hipocrimétricas. A artrocentese do líquido sinovial é o principal exame a ser realizado, oferecendo subsídios laboratoriais essenciais para o diagnóstico correto.
Apresentação clínica das duas doenças
Artrite séptica
A artrite séptica se manifesta de forma abrupta e agressiva. O paciente geralmente relata dor de forte intensidade, com início agudo, associada a sinais flogísticos exuberantes, como rubor, edema e calor articular. A limitação funcional é acentuada, muitas vezes impedindo o mínimo movimento da articulação acometida. A febre alta é comum, acompanhada de sintomas sistêmicos como astenia, calafrios e sinais de toxemia.
O joelho é a articulação mais acometida, seguido por quadril, tornozelo e punho. Em usuários de drogas injetáveis, é frequente o acometimento axial. A infecção se instala geralmente por via hematogênica, mas também pode ocorrer por inoculação direta (em trauma ou procedimentos invasivos) ou por contiguidade de um foco infeccioso próximo. A dor tem caráter progressivo e refratário aos analgésicos comuns. Além disso, a evolução sem tratamento adequado pode culminar em destruição articular irreversível e sepse.

Gota
Já a gota representa a manifestação inflamatória da deposição intra-articular de cristais de monourato de sódio, secundária à hiperuricemia. A crise aguda de gota inicia-se abruptamente, muitas vezes durante a madrugada, com dor intensa e localizada. A articulação classicamente afetada é a primeira metatarsofalangeana, fenômeno conhecido como podagra. Joelhos, tornozelos e outras articulações periféricas também podem ser acometidas.

O paciente pode relatar episódios prévios semelhantes. O quadro é geralmente autolimitado, com resolução espontânea em até uma semana, embora possa recidivar. A crise pode ser desencadeada por oscilações nos níveis de ácido úrico, consumo alcoólico, dieta rica em purinas, uso de diuréticos ou jejum prolongado. A apresentação sistêmica é, em geral, menos intensa do que na artrite séptica, e a febre, se presente, tende a ser baixa.
Quadro clínico: Semelhanças e armadilhas
Ambas as doenças compartilham características clínicas marcantes, como início agudo, dor intensa, calor, edema e padrão monoarticular. Além disso, nos exames laboratoriais sistêmicos, ambas podem cursar com leucocitose, aumento de PCR e elevação da velocidade de hemossedimentação (VHS), confundindo o diagnóstico diferencial.
Uma armadilha comum ocorre com a dosagem de ácido úrico: durante a crise de gota, os níveis séricos de ácido úrico podem estar normais ou até reduzidos, fato que frequentemente leva a exclusão equivocada do diagnóstico. Por outro lado, a ausência de febre não exclui artrite séptica, principalmente em imunodeprimidos e idosos, nos quais o quadro pode se manifestar de forma atípica e oligossintomática.
O padrão temporal também pode confundir: na gota, a dor atinge o pico em poucas horas, geralmente dentro das primeiras 24 horas, enquanto na artrite séptica o quadro tende a se agravar progressivamente. A gota também pode se manifestar de forma poliarticular em fases avançadas, simulando artrite reumatóide, especialmente quando há tofos gotosos e erosões articulares.
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Principais diferenças clínicas
Artrite séptica
A artrite séptica caracteriza-se por dor contínua, progressiva, intensa e geralmente acompanhada por febre alta persistente e sinais sistêmicos evidentes. A impotência funcional é severa, o paciente frequentemente não tolera sequer o toque da articulação afetada. O líquido sinovial é purulento e o quadro pode evoluir rapidamente para destruição articular e sepse.
Gota
Já a gota apresenta-se com dor aguda, de instalação súbita, muitas vezes com início noturno, atingindo o pico em 24 horas. A resolução é espontânea em até 7 dias, e a crise costuma ser precedida por fatores precipitantes. A presença de tofos subcutâneos (depósitos visíveis de cristais de urato), especialmente no pavilhão auricular, tendões ou bursas, sugere fortemente o diagnóstico de gota crônica.
A história de episódios anteriores semelhantes, na mesma ou em outras articulações, também auxilia na diferenciação. Manifestação extra-articular é rara na artrite séptica, com exceção da forma gonocócica, que pode cursar com poliartrite migratória, dermatite e tenossinovite.
Exames complementares: O que pedir e como interpretar?
A artrocentese diagnóstica é obrigatória na investigação de toda monoartrite aguda. Na artrite séptica, o líquido sinovial costuma ser turvo ou purulento, com celularidade elevada (>50.000 células/mm³, podendo ultrapassar 150.000), com predomínio de polimorfonucleares (>75%). A glicose está geralmente diminuída e as proteínas aumentadas.
O Gram é positivo em cerca de 60% a 70% dos casos e a cultura é positiva em até 90%, sendo essencial para direcionar o tratamento antimicrobiano. A presença de diplococos Gram-negativos deve suscitar a suspeita de artrite gonocócica, sendo necessária coleta de amostras de mucosas genitais, anais e faríngeas.

Na gota, o líquido sinovial é inflamatório, com leucocitose entre 10.000 e 100.000/mm³, e predomínio neutrofílico. A principal característica é a visualização de cristais de monourato de sódio, com birrefringência negativa sob luz polarizada, em forma de agulha. A cultura e o Gram são negativos.
Exames adicionais, como radiografia, podem revelar sinais crônicos da gota, como erosões em saca-bocado e presença de tofos. A ultrassonografia pode identificar o sinal do duplo contorno (depósito de cristais na cartilagem) ou o sinal da “nevasca” (tofos gotosos). Na artrite séptica, sinais radiológicos geralmente aparecem tardiamente, como rarefação óssea e diminuição do espaço articular.
A diferenciação entre artrite séptica e gota é um ponto crítico na condução clínica da monoartrite aguda.
A artrite séptica deve ser sempre considerada com prioridade, pois seu manejo precoce com antibioticoterapia adequada e, quando indicado, drenagem articular, é determinante para o prognóstico. A gota, por outro lado, embora dolorosa, tem evolução autolimitada e tratamento conservador baseado em anti-inflamatórios, colchicina e terapias hipouricemiantes em fases subsequentes.
O quadro clínico pode ser semelhante nas duas condições, motivo pelo qual a artrocentese é o exame mais importante, devendo ser realizada sempre que houver suspeita de infecção articular. O líquido sinovial fornece pistas valiosas para o diagnóstico correto, sendo essencial analisar sua aparência, celularidade, presença de cristais, glicose, proteínas, Gram e cultura.
Conhecer as particularidades clínicas, laboratoriais e epidemiológicas de cada entidade permite ao médico formular hipóteses diagnósticas mais seguras, evitar armadilhas e instituir o tratamento mais apropriado em tempo hábil, garantindo a preservação da função articular e a segurança do paciente.
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FONTES:
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