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Publicado em
2/7/25

Gota x artrite séptica: Como diferenciar no plantão e na prova

Gota x artrite séptica: Como diferenciar no plantão e na prova
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A gota e a artrite séptica são consideradas as principais monoartrites agudas. A monoartrite aguda é uma condição frequente nos serviços de emergência, sendo caracterizada por dor, calor, rubor e edema em uma única articulação. Diante desse quadro clínico, é imperativo que o médico primeiramente descarte a possibilidade de uma artrite séptica, dado seu potencial destrutivo e evolução rápida. 

Ela é uma emergência ortopédica, responsável por significativa morbidade e mortalidade, especialmente em populações vulneráveis, como idosos, imunodeprimidos e portadores de comorbidades crônicas.

Paralelamente, a artrite gotosa — manifestação clínica inflamatória da gota — também se apresenta com quadro inflamatório agudo e pode mimetizar uma artrite infecciosa, o que impõe um desafio diagnóstico considerável.

A distinção entre essas duas entidades é crucial, pois enquanto a artrite séptica demanda intervenção antimicrobiana imediata e, por vezes, drenagem cirúrgica, a gota é manejada com anti-inflamatórios e medidas hipocrimétricas. A artrocentese do líquido sinovial é o principal exame a ser realizado, oferecendo subsídios laboratoriais essenciais para o diagnóstico correto.

Apresentação clínica das duas doenças

Artrite séptica

A artrite séptica se manifesta de forma abrupta e agressiva. O paciente geralmente relata dor de forte intensidade, com início agudo, associada a sinais flogísticos exuberantes, como rubor, edema e calor articular. A limitação funcional é acentuada, muitas vezes impedindo o mínimo movimento da articulação acometida. A febre alta é comum, acompanhada de sintomas sistêmicos como astenia, calafrios e sinais de toxemia. 

O joelho é a articulação mais acometida, seguido por quadril, tornozelo e punho. Em usuários de drogas injetáveis, é frequente o acometimento axial. A infecção se instala geralmente por via hematogênica, mas também pode ocorrer por inoculação direta (em trauma ou procedimentos invasivos) ou por contiguidade de um foco infeccioso próximo. A dor tem caráter progressivo e refratário aos analgésicos comuns. Além disso, a evolução sem tratamento adequado pode culminar em destruição articular irreversível e sepse.

Imagem mostrando uma monoartrite de joelho com sinais inflamatórios
Monoartrite de joelho com sinais inflamatórios. Fontes: Scielo 

Gota

Já a gota representa a manifestação inflamatória da deposição intra-articular de cristais de monourato de sódio, secundária à hiperuricemia. A crise aguda de gota inicia-se abruptamente, muitas vezes durante a madrugada, com dor intensa e localizada. A articulação classicamente afetada é a primeira metatarsofalangeana, fenômeno conhecido como podagra. Joelhos, tornozelos e outras articulações periféricas também podem ser acometidas. 

Exemplo de podagra
Exemplo de podagra. Fonte: Cuidados pela vida 

O paciente pode relatar episódios prévios semelhantes. O quadro é geralmente autolimitado, com resolução espontânea em até uma semana, embora possa recidivar. A crise pode ser desencadeada por oscilações nos níveis de ácido úrico, consumo alcoólico, dieta rica em purinas, uso de diuréticos ou jejum prolongado. A apresentação sistêmica é, em geral, menos intensa do que na artrite séptica, e a febre, se presente, tende a ser baixa.

Quadro clínico: Semelhanças e armadilhas

Ambas as doenças compartilham características clínicas marcantes, como início agudo, dor intensa, calor, edema e padrão monoarticular. Além disso, nos exames laboratoriais sistêmicos, ambas podem cursar com leucocitose, aumento de PCR e elevação da velocidade de hemossedimentação (VHS), confundindo o diagnóstico diferencial. 

Uma armadilha comum ocorre com a dosagem de ácido úrico: durante a crise de gota, os níveis séricos de ácido úrico podem estar normais ou até reduzidos, fato que frequentemente leva a exclusão equivocada do diagnóstico. Por outro lado, a ausência de febre não exclui artrite séptica, principalmente em imunodeprimidos e idosos, nos quais o quadro pode se manifestar de forma atípica e oligossintomática. 

O padrão temporal também pode confundir: na gota, a dor atinge o pico em poucas horas, geralmente dentro das primeiras 24 horas, enquanto na artrite séptica o quadro tende a se agravar progressivamente. A gota também pode se manifestar de forma poliarticular em fases avançadas, simulando artrite reumatóide, especialmente quando há tofos gotosos e erosões articulares.

Veja também:

Principais diferenças clínicas

Artrite séptica

A artrite séptica caracteriza-se por dor contínua, progressiva, intensa e geralmente acompanhada por febre alta persistente e sinais sistêmicos evidentes. A impotência funcional é severa, o paciente frequentemente não tolera sequer o toque da articulação afetada. O líquido sinovial é purulento e o quadro pode evoluir rapidamente para destruição articular e sepse

Gota

Já a gota apresenta-se com dor aguda, de instalação súbita, muitas vezes com início noturno, atingindo o pico em 24 horas. A resolução é espontânea em até 7 dias, e a crise costuma ser precedida por fatores precipitantes. A presença de tofos subcutâneos (depósitos visíveis de cristais de urato), especialmente no pavilhão auricular, tendões ou bursas, sugere fortemente o diagnóstico de gota crônica. 

A história de episódios anteriores semelhantes, na mesma ou em outras articulações, também auxilia na diferenciação. Manifestação extra-articular é rara na artrite séptica, com exceção da forma gonocócica, que pode cursar com poliartrite migratória, dermatite e tenossinovite.

Exames complementares: O que pedir e como interpretar?

A artrocentese diagnóstica é obrigatória na investigação de toda monoartrite aguda. Na artrite séptica, o líquido sinovial costuma ser turvo ou purulento, com celularidade elevada (>50.000 células/mm³, podendo ultrapassar 150.000), com predomínio de polimorfonucleares (>75%). A glicose está geralmente diminuída e as proteínas aumentadas.

O Gram é positivo em cerca de 60% a 70% dos casos e a cultura é positiva em até 90%, sendo essencial para direcionar o tratamento antimicrobiano. A presença de diplococos Gram-negativos deve suscitar a suspeita de artrite gonocócica, sendo necessária coleta de amostras de mucosas genitais, anais e faríngeas. 

Esquematização de uma artrocentese do joelho
Esquematização de uma artrocentese do joelho. Fonte: MSD manuals 

Na gota, o líquido sinovial é inflamatório, com leucocitose entre 10.000 e 100.000/mm³, e predomínio neutrofílico. A principal característica é a visualização de cristais de monourato de sódio, com birrefringência negativa sob luz polarizada, em forma de agulha. A cultura e o Gram são negativos. 

Exames adicionais, como radiografia, podem revelar sinais crônicos da gota, como erosões em saca-bocado e presença de tofos. A ultrassonografia pode identificar o sinal do duplo contorno (depósito de cristais na cartilagem) ou o sinal da “nevasca” (tofos gotosos). Na artrite séptica, sinais radiológicos geralmente aparecem tardiamente, como rarefação óssea e diminuição do espaço articular.

Categoria Normal Não inflamatório Inflamatório Séptico Hemorrágico
Volume (ml) < 3,5 > 3,5 > 3,5 > 3,5 > 3,5
Cor claro amarelo amarelo esverdeado vermelho
Viscosidade alata alta baixo variável variável
Leucócitos < 200 0 a 2000 > 2000 > 20.000 variável
Porcentagem de PMN < 25 < 25 ≥ 50 ≥ 75 50 a 75
Cultura Negativa Negativa Negativa frequentemente positiva Negativa
Análise diferencial do líquido sinovial. Fonte: EMR

A diferenciação entre artrite séptica e gota é um ponto crítico na condução clínica da monoartrite aguda. 

A artrite séptica deve ser sempre considerada com prioridade, pois seu manejo precoce com antibioticoterapia adequada e, quando indicado, drenagem articular, é determinante para o prognóstico. A gota, por outro lado, embora dolorosa, tem evolução autolimitada e tratamento conservador baseado em anti-inflamatórios, colchicina e terapias hipouricemiantes em fases subsequentes. 

O quadro clínico pode ser semelhante nas duas condições, motivo pelo qual a artrocentese é o exame mais importante, devendo ser realizada sempre que houver suspeita de infecção articular. O líquido sinovial fornece pistas valiosas para o diagnóstico correto, sendo essencial analisar sua aparência, celularidade, presença de cristais, glicose, proteínas, Gram e cultura. 

Conhecer as particularidades clínicas, laboratoriais e epidemiológicas de cada entidade permite ao médico formular hipóteses diagnósticas mais seguras, evitar armadilhas e instituir o tratamento mais apropriado em tempo hábil, garantindo a preservação da função articular e a segurança do paciente.

Leia mais:

FONTES:

  • Harrison's Principles of Internal Medicine. 21. ed. [S. l.: s. n.], 2022.
  • Manual do Residente de Clínica Médica . 3. ed. Santana de Parnaíba [SP]: Manole, 2023.
  • PINHEIRO, Geraldo da Rocha Castelar; FULLER, Ricardo; BERND, Roberto. Gota. In: SOCIEDADE BRASILEIRA DE REUMATOLOGIA. Tratado de Reumatologia. 2. ed. São Paulo: Manole, 2021. cap. 63.
  • FERNANDEZ, Rafael Navarrete; BEZERRA NETO, Francisco Alves. Artrite séptica bacteriana não gonocócica e osteomielite. In: SOCIEDADE BRASILEIRA DE REUMATOLOGIA. Tratado de Reumatologia. 2. ed. São Paulo: Manole, 2021. cap. 67

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